Adilson sempre teve um fascínio enorme pelo olhar feminino. Se uma garota de olhos claros passasse pela gente, ele logo ficava encantado. Sua mente silenciava, a realidade parecia rodar em câmera lenta como nos filmes. Era horrível quando estávamos juntos e acontecia isso, pois eu era obrigado a repetir tudo que estava dizendo assim que sua cabeça voltasse do mundo da lua. Como usávamos o metrô para ir e voltar do trabalho, era comum vê-lo chegar no departamento falando de alguma guria cotidiana de olhar oceano ou esmeralda. “Estou xonadão, brother!”, dizia, repetia… Enchia o saco. Quando ele vinha assim, com um sorriso abobalhado na cara, tanto eu quanto o restante da equipe já sabíamos do que se tratava. Era uma paixão diferente todas as vezes. Diferente, claro, se ignorarmos o elemento comum entre todas as moças.
Certa feita, deixamos o expediente um pouco mais tarde que o tradicional. Era uma quinta-feira qualquer, estava ventando pra burro, a tarde já ensaiava uma baita chuva. Como havíamos recebido no dia anterior, juntamos uns trocados e tomamos duas cervejas pra esquecer o plantão puxado e falar mal do novo chefe. Depois, como de costume, seguimos em direção ao metrô. Ele falava alguma coisa sobre o Fluminense enquanto descíamos a escada rolante, entretanto eu não ouvi quase nada porque estava espantado com a cena rolando alguns metros abaixo. Na parede contrária a bilheteria, um sujeito bem arrumado – de maleta, terno e tudo mais, sacava do bolso e doava uma nota de cem Temers a uma velinha sentada no chão. Eu já tinha visto ela antes, não era bem uma mendiga, era uma suposta médium que ganhava a vida jogando cartas, búzios, lendo o passado, presente, futuro ou algo assim. Todavia aquela quantia retirada do nada, sem nem ter rolado uma consulta, me surpreendeu bastante;
– Você sabe que com esse elenco chinfrim seremos rebaixados ano que vem, né mano? – Disse Adilson.
– Cala a boca, porra. Tu viu aquilo, cara? – Interrompi.
– Aquilo o quê? – Respondeu-me.
– O maluco deu cem pratas a coroa, do nada! Tem alguma coisa errada. Estamos em crise, o estado está falido, ninguém é bonzinho assim – Completei.
– Eita!
– Pois é.
– Deve ser uma nota falsa, brother. Ou então ela foi certeira em alguma previsão, deixou o safado rico. Esqueça esse lance, cada um com seu cada um. Ela tem cara de quem precisa do dinheiro – Falou Adilson.
– Tá… Pode ser, mas eu fiquei curioso. Bora dá uma chegada lá?
– Meu irmão, tu não tem jeito né? Vamos então.
Quando chegamos ao final da escada, caminhamos até a senhorinha. Ela usava uma manta escura, meio roxa. Com o rosto manchado e sujo, era caolha e tinha três verrugas na testa. Estava sentada num banquinho, com uma mesinha de madeira a frente. Na mesa havia um copo de chá, duas velas e algumas cartas de tarô. Acima de sua cabeça, uma plaquinha de madeira foi pendurada a prego na parede com os dizeres:
“Búzios, Tarô e Amarrações da tia Gê.
Leio seu futuro.
Trago seu amor de volta.
Faço simpatias.
Quebro maldições e amarrações do passado.
Apenas 10 reais”.
Cheguei de mansinho e puxei assunto com toda educação do mundo. Adilson ficou um pouco mais atrás, desconfiado, olhando para os lados.
– Olá, boa tarde.
– Olá meu filho – respondeu Gê – Sente falta de sua amada? Posso lhe dar os ingredientes para uma poção maravilhosa, custa apenas 10 reais.
– Não, obrigado. Estou fugindo disso, tia… Gê? Qual é o seu nome verdadeiro – Perguntei.
Ela me encarou profundamente e depois, encarou Adilson. Quando olhou pra ele, chegou a abrir um pouco o outro olho fechado.
– Sou Genilda. Bom, se não querem conhecer meu trabalho, então no que posso ajudá-los? – Pareceu desconfiada.
– É que… Nós dois ficamos curiosos quando vimos o rapaz lhe dar aquela esmola tão alta sem mais nem menos. Por isso nos encostamos para ver o seu trabalho.
– Ah, sim. Hi Hi Hi Hi… – Ela riu de um modo engraçado – Mas não foi uma esmola, foi uma leve gorjeta do “dotô” advogado.
– Por que? A Sra. Por acaso o ajudou a se tornar advogado? – Questionou Adilson.
– Não. Ajudei num caso que ele pegou… Graças a Deus aquele bandido terrível, terrível! Está atrás das grades – Disse com semblante forte.
– Ah sim, entendi.
Depois da resposta, Adilson se aproximou e ficou do meu lado, tocou no meu ombro e colou a boca na minha orelha;
– Vamos embora daqui, mano. Tô vendo uns trombadinhas descendo e subindo. Acho que isso tudo é ensaiado. Ela deve estar armando pra que eles roubem a gente.
– Aguenta mais um pouco ai, cara – Repliquei.
Genilda tossiu um pouco, sorriu, espalhou algumas cartas e acendeu duas velas. Puxou um banquinho que estava ao seu lado e colocou na frente da mesinha.
– Sabe, eu nasci com um dom interessante rapazes, muito interessante. Não os condeno pelo ceticismo, ele infectou a todos, a todos! Vejo tanta gente descendo por essas escadas, todos infectados…
– Do que ela está falando? – Indagou-me Adilson.
– Xiu! – Retruquei.
Quando ela terminou os preparativos, ordenou:
– Vamos lá, senta aqui!
– Eu? – Perguntei.
– Qualquer um dos dois – Ela disse.
– Olha senhora, não temos dinheiro. Nós só viemos por curiosidade mesmo. Perdoe-nos, mas já estamos indo.
– Não quero dinheiro – falou sorrindo – Quero apenas mostrar o motivo pelo qual o rapaz me pagou um valor que vocês consideram alto. Hi Hi Hi. Eu ajudei o “dotô” a resolver um probleminha antigo, ah! Aquilo mudou a carreira dele… Vejamos, venha você! O fortão.
Ela apontou o dedo para Adilson.
– Não tô a fim não, tia – Ele fez um carão.
– Sim! Você. Vai ficar com medo de uma simples velhinha?
Adilson bufou.
– Tá bom, eu vou – Ele puxou o banquinho e sentou de frente pra Gê – Espero que você não grave essa porra pra mostrar aos moleques do trabalho – Disse a mim.
Eu fiquei atrás dele.
– Relaxa mano, não vou fazer isso – Menti. Em seguida, puxei o celular e comecei a gravar escondido.
Tia Gê passou as mãos sobre o fogo da vela, gesticulando como se estivesse “lavando” as palmas, as chamas pareciam uma espécie de torneira invertida. Em seguida, fechou seu único olho e falou algumas coisas que não compreendemos. Nesse momento Adilson olhou pra trás sorrindo, mas fechou a boca assim que percebeu que a câmera estava ligada. Ao contrário dele, eu ri. Não deu pra resistir.
– Estique as palmas das mãos, por favor – Pediu Tia Gê.
Adilson esticou. Ela colocou suas mãos sobre as dele e segurou. Ficou assim por alguns segundos. Ainda de olhos fechados, ela apertou bem forte. Parecia que nada aconteceria até que Gê levou uma espécie de baque e abriu de forma brusca os dois olhos. Sua face embranqueceu. Fez caras e bocas, gemeu baixinho, se contorceu. Eu parei de rir quando percebi que o negócio estava ficando sério. Ela apertava tanto as mãos do meu colega que suas veias ficaram saltadas. Desliguei a câmera e pus o celular no bolso, aproximei-me de Adilson por trás, ele não dizia nada, estava de olhos fechados, com a cara feia. Parecia lembrar de algo que o incomodava muito. Quando pensei em tocar nele, ela o soltou. Mas o soltou numa força tão grande que o baque a lançou de costas para a parede de trás. A plaquinha pendurada caiu, acertaria sua cabeça, porém não a atingiu porque corri e segurei.
– Obrigada meu filho, obrigada – Ela agradeceu chorando.
E o que tornou tudo ainda mais esquisito foi seu pranto, ela chorou bastante. Eu coloquei a placa sobre a mesa e Adilson levantou do banco com pressa. Tomou um pouco de distância e ficou observando. O cara ficou pálido, ruía as unhas. A velhinha chorava e soluçava sem parar. Eu fiquei ali naquele hiato, como se tivesse entrado sem querer num velório.
– Ual, acho que o barato foi forte! Vou ali em baixo comprar um copo d’agua pra vocês, ok? – Peguei a carteira do bolso e fui andando.
– Não há necessidade – Ela respondeu baixinho.
Em seguida, tia Gê se levantou, aproximou-se de Adilson e lhe deu um abraço. Acompanhei a cena inteira completamente mudo. Ele resistiu a princípio, mas logo depois retribuiu o gesto de afeto. Não resisti a cena e quebrei o silêncio não intencional;
– Gente, o que diabos rolou aqui? Vocês podem me dizer?
Tia Gê se afastou um pouco, secou o rosto de Adilson e começou a falar com ele;
– Entendo suas sequelas, filho. Aquela ordinária, pessoa sem coração, bruxa, falsa babá! Ah, quantas e quantas vezes ela esperou seus pais saírem pra te tocar… Como ela te machucou. Como ela te obrigou a guardar aqueles segredos terríveis, como ela roubou seu coração por tantos e tantos anos! Sei que é difícil esquecer aqueles olhos, um de cada cor, certo? Mas Deus te ajudará a vencer! Você só precisa esquecer e não correr mais atrás. Aquilo não era amor, nunca foi! Aquilo foi uma obra do mal, um – um abuso! Desista. Você não a achará em ninguém…
– CALA A MALDITA BOCA! – Gritou Adilson.
Todo mundo parou e ficou olhando pra gente. Em seguida ele virou para mim, me empurrou e pediu;
– Apague o vídeo!
– Ok, brother. Calma! Vamos embora.
– Não. Vá sozinho hoje, acabei de lembrar de uma coisa… Acho que hoje eu vou de ônibus. – murmurou Adilson, agora num tom mais baixo.
– Beleza, mas…
– Mas nada! Até amanhã.
– Até.
Adilson subiu as escadas correndo. Eu voltei minhas atenções para a tia.
– Bom… Acho que ele me odeia agora.
– Ele não te odeia, rapaz. Ele só está confuso. Tentei olhar para o futuro dele, mas ele não possui futuro desde os seis anos de idade. Vive numa prisão psicológica.
– Entendi – Lorota! Eu não compreendi bulhufas do que ela dizia – Já que acabou, diga ai quanto custou o negócio? – Perguntei.
– Ele se libertou. Ele é quem deveria te pagar por carrega-lo até aqui – Respondeu-me.
– Bom, então, enfim, é. Quer dizer… Passar bem, Genilda.
– Que Deus te abençoe rapaz.
– E a ti também!
Segui meu caminho. Peguei uma grana da carteira, comprei o bilhete e a tal da garrafa d’água, passei pela catraca e fui embora. Eu e Adilson nunca mais tocamos no assunto, até porque ele não demorou a pedir demissão. Meses depois, Ele se casou com uma morena de olhos escuros…
Mais uma que eu tenho certeza de ver em seu livro…que belo conto cara!
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Adoreiiii! Você e seus personagens maravilhosos! Parabéns!!
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Muito bom… Parabéns…
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Maravilhoso texto! Parabéns!♥
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Obrigado Karol ❤
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Mais uma vez, incrível!
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Obrigado, minha querida.
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